O GATO PRETO - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe (2024)

OGATO PRETO

EdgarAllan Pöe

(1809- 1849)

Tradução:S. de M. (Séc. XIX)

Nãoespero nem peço que acreditem na extraordinária e, contudo, vulgar história quelhe vou narrar. Na realidade, seria um louco se tal esperasse, num caso em queos meus sentidos repelem o seu próprio testemunho. E, todavia, eu não sou umdoido —e não estou sonhando, com certeza. Mas, como devo morrer amanhã, querohoje aliviar a minha alma.

Omeu fim imediato é apresentar ao mundo —claramente, sucintamente e semcomentários —uma série de simples acontecimentos domésticos.

Pelassuas consequências, esses acontecimentos terrificaram-me, torturaram-me,aniquilaram-me. Entretanto, não tentarei aclará-los. Considero-os horríveis,ainda que a muitas pessoas possam parecer menos terríveis do que estranhos.

Épossível que mais tarde haja uma inteligência mais serena que reduza o meufantasma à situação comezinha de simples lugar comum —uma inteligência maisserena, mais lógica e muito menos excitável que a minha, que nada mais acharános acontecimentos que um conto com terror, do que uma sucessão ordinária decausa e efeitos naturalíssimos.

Desdea infância que era notado o meu caráter naturalmente humilde e bondoso. Asensibilidade do meu coração era até então notória, que fizera de mim o joguetede meus companheiros.

Aminha maior tendência era uma amizade louca pelos animais, de que possuía umagrande variedade, com que a minha família me presenteara.

Passavaquase todo tempo com eles e nunca me sentia tão feliz como quando lhes dava decomer ou os acariciava. Esta particularidade de meu caráter aumentou com odesenvolvimento físico, de forma que, depois de homem, o entreter-me comanimais era um dos meus maiores prazeres.

Aosque sentiram uma grande afeição por um cão fiel e inteligente, não necessitoexplicar a natureza ou a intensidade do gosto proveniente de tal afeição. Há naamizade desinteressada do animal, no sacrifício de si próprio, o quer que sejaque toca diretamente no coração do que tem frequentemente ocasião de verificara vil amizade e fidelidade mesquinha do “homem natural”.

Casei-me,e considerei-me verdadeiramente feliz por encontrar em minha mulher umadisposição de caráter semelhante à minha.

Vistoque eu gostava imenso dos animais domésticos, minha esposa não perdia nunca amenor ocasião de acrescentar o número dos que possuíamos. Tínhamos pássaros, umpeixe dourado, um lindo cão, coelhos, um saguim e um gato.

Esteúltimo era um animal notoriamente forte e belo, completamente reto, duma inteligênciamaravilhosa.

Sempreque falava da inteligência do gato, minha mulher, que no fundo era um poucosupersticiosa, fazia frequentes alusões à velha crença popular que consideratodos os gatos pretos como feiticeiras disfarçadas. Isto não quer dizer que elaacreditasse na lenda: se menciono o fato é, simplesmente, porque me ocorreu,neste momento, à memória.

Plutão—assim se chamava o gato —era o meu preferido, o meu camarada. Só eu lhe davade comer, e seguia-me sempre por toda a casa. Era mesmo com dificuldade queconseguia de impedi-lo de me seguir pelas ruas.

Anossa amizade durou muitos anos, durante os quais o conjunto do meu caráter edo meu temperamento —por intervenção do demônio da intemperança, com vergonha oconfesso —sofreu uma alteração, radicalmente má.

Tornei-media a dia indiferente pelos sentimentos dos outros. Empregava uma linguagembrutal sempre que falava de minha mulher. Por fim, cheguei mesmo a agredi-la.

Osmeus pobres amigos naturalmente ressentiram-se da mudança do meu caráter. Nãosomente eu os desprezava, mas também os maltratava.

Continuava,contudo, a ter por Plutão uma consideração que me impedia de o maltratar,enquanto que não sentia o menor escrúpulo em bater nos coelhos, no saguim emesmo no cão, quando o acaso ou a amizade que tinham por mim faziam com que osencontrasse em frente do pé.

Comome tornasse cada vez mais intratável —que vício há que possa comparar-se aoálcool? –, o próprio Plutão, que envelhecia, e que, por isso, me incomodava comas suas carícias —o próprio Plutão —começou a conhecer os efeitos do meupéssimo caráter.

Umanoite, ao entrar em casa muito embriagado, de volta de um botequim ondehabitualmente passava as noites, pareceu-me que o gato fugia de mim. Agarrei-o;mas ele, atemorizado pela minha violência, feriu-me levemente na mão com osdentes.

Repentinamente,apossou-se de mim um furor de demônio. Desconheci-me. A minha alma pareceuabandonar subitamente o corpo, e minha perversidade hiperdiabólica, saturada degim, penetrou todas as fibras do meu ser.

Tireida algibeira do colete um canivete e abri-o; agarrei o gato pelo pescoço efriamente fiz-lhe saltar um dos olhos da órbita.

Coro,sinto ferver-me o sangue, estremeço ao escrever esta inclassificávelatrocidade!

Quandoa razão me voltou com o dia, depois de terem desaparecido os vapores do meudeboche noturno, tive um sentimento, um misto de horror e remorso, pelo crimeque praticara; mas era um fraco e equívoco sentimento, de que a alma não seressentiu. Voltei de novo aos excessos alcoólicos, afogando bem depressa novinho a lembrança do meu crime.

Entretanto,a cura do gato progredia lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, éverdade, um aspecto repelente, mas o animal não indicava dever sofrer para o futuro.

Andavapela casa como costumava, mas logo que me ouvia os passos, fugia aterrorizado.

Demeu antigo caráter restava ainda o suficiente para que me afligisse com aevidente antipatia dum animal que eu dantes tanto gostara.

Masesse sentimento foi em depressa substituído pela irritação. E então apareceu,para complemento da minha queda fatal e revogável, o espírito da PERVERSIDADE.

Desteespírito não tem a filosofia a menor noção. Todavia, tão certo como existir aminha alma, creio que a perversidade é uma das primitivas impulsões do coraçãohumano, uma das primeiras indivisíveis faculdades ou sentimentos que dirigem ocaráter do homem.

Quemse não surpreendeu cem vezes cometendo uma ação tola ou vil, pela simples razãode saber que não devia cometê-la?

Nãotemos nós uma frequente inclinação, apesar da excelência de nosso senso, paraviola o que se chama a Lei, simplesmente por compreendermos que é a Lei?

Oespírito de perversidade — disse eu — causou a minha ruína final. Senti odesejo ardente, insondável, da alma se torturar a si própria, de violentar aprópria natureza —de fazer o mal pelo amor ao mal –, que me levou a continuare, finalmente, a consumar o suplício que infligira ao pobre animal inofensivo.

Umamanhã, com toda a presença de espírito, passei um nó corredio em volta dopescoço do gato e pendurei-o ao tronco de uma árvore. Pendurei-o com os olhosrasos de lágrima, com o mais amargo remorso no coração. Pendurei-o porque sabiaque me amara, e porque sentia que o pobre animal nunca me dera razão de zanga.Pendurei-o porque sabia que, procedendo assim, cometia um pecado, um pecadomortal que comprometia a minha alma imortal, ao ponto de a colocar —se uma talcoisa fosse possível —para além da misericórdia do Deus Misericordioso eTerribilíssimo.

Nanoite que se seguiu ao dia que se seguiu aquele cruel ato, fui acordado emsobressalto pelo grito de: “fogo, fogo!”. Os cortinados do meu leito eram pastodas chamas.

Todaa casa ardia.

Foicom muita dificuldade que escapamos ao sinistro, minha mulher, um criado e eu.

Aperda foi completa.

Todaa minha fortuna foi destruída pelo incêndio, o que me fez cair num desesperoprofundo.

Nãopretendo estabelecer uma ligação entre a atrocidade e o desastre: sou superiora essa fraqueza.

Narroapenas o encadeamento de fatos, de que não desprezarei um anel. No dia que seseguiu ao incêndio, visitei as ruínas da casa.

Asparedes tinham caído, à exceção de uma, que era um fraco tabique interior,situado, pouco mais ou menos, ao centro da casa, e contra o qual se arrumava acabeceira do meu leito.

Estetabique resistira, em grande parte, à ação do fogo, fato que atribuí a ter elesido rebocado recentemente.

Emvolta do tabique apinhava-se uma multidão enorme, que parecia examinarminuciosa e atentamente uma certa parte dele.

Aspalavras “extraordinário!”, “singular!” e outros termos de idênticasignificação excitaram a minha curiosidade.

Aproximei-mee vi, semelhante a um baixo-relevo esculpido na superfície branca da parede afigura de um gigantesco gato.

Aimagem reproduzira-se com uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Em volta dopescoço do gato havia uma corda.

Imediatamenteao ver esta aparição —porque não poderia considerar o fato senão como umaaparição –, o meu espanto e o meu terror foram extremos. Mas, por fim, areflexão auxiliou-me.

Ogato, lembro-me perfeitamente, fora dependurado num jardim adjacente à casa.Aos gritos de alarme, o jardim devia ter sido imediatamente invadido pelaturba, e o animal fora decerto dependurado por alguém, e atirado para o meuquarto pela janela aberta. E tinham procedido assim para me acordarem, semdúvida. O desmoronamento das paredes comprimira a vítima da minha crueldade noestuque com que pouco tempo antes o tabique fora rebocado; a cal do tabique,combinado com o amoníaco do cadáver, tinha operado a imagem tal qual eu a vi.

Conquantosatisfizesse assim rapidamente a minha razão, senão também à consciência,relativamente ao fato surpreendente que acabo de contar, nem por isso esse fatodeixou de fazer na minha imaginação uma impressão profunda.

Durantemuitos meses não me abandonou o fantasma do gato; e durante esse período nasceuna minha alma um meio sentimento que parecia ser, mas não era, o remorso.

Chegueia deplorar a perda do gato e a procurar nas imundas tabernas, que frequentavahabitualmente, um outro animal da mesma espécie, e parecido com o que eumatara, para o substituir.

Erauma noite. Estando sentado, meio bêbado já, numa taberna imundíssima, atraiu-mesubitamente a atenção um objeto preto, estendido sobre uns enormes tonéis de gime rum, que enchiam a taberna.

Haviajá uns minutos que eu olhava para o túnel e surpreendia-me por não ter aindadado pela presença do objeto colocado sobre ele.

Aproximei-mee toquei-lhe com a mão.

Eraum gato preto —um grande gato —do tamanho de Plutão, pelo menos, parecido comeste, exceto num ponto. Plutão não tinha um só pelo branco em todo corpo,enquanto o que estava sobre o tonel tinha uma mancha alarga e branca, mas deuma forma indecisa, que lhe cobria todo o peito.

Logoque lhe toquei, o gato levantou-se rapidamente, rosnou com força, esfregou-sena minha mão parecendo gostar muito das minhas carícias.

Erana realidade o animal que eu até então procurara inutilmente.

Pediao dono da taberna que me vendesse o gato, mas o homem declarou não lhe pertencero animal; não o conhecia, nunca o vira até então.

Continueia acariciá-lo e quando me preparava para voltar para casa, o gato mostrou-sedisposto a acompanhar-me.

Consentie, enquanto caminhava, baixava-me para o acariciar.

Logoque chegamos, o gato como que se achou em sua casa, tornando-se imediatamentemuito amigo de minha mulher.

Deminha parte, senti logo nascer uma grande antipatia pelo gato.

Sucediajustamente o contrário do que esperava; mas a verdade —não sei como nem por quese dava este fato —era que a sua evidente amizade por mim quase me incomodava eaborrecia.

Lentamente,estes sentimentos de incômodo e de aborrecimento aumentaram até ao ódio.

Evitavao animal, e uma certa sensação de vergonha e a lembrança do meu primeiro ato decrueldade impediam-me de o maltratar.

Durantealgumas semanas me abstive de lhe bater ou de o tratar violentamente; masgradualmente —insensivelmente — comecei a olhá-lo com indizível terror, e afugir de sua odiosa presença, como dum hálito empestado.

Oque aumentou sem dúvida o meu ódio pelo animal foi a descoberta que fiz, namanhã seguinte à noite em que eu o levei para casa que, como Plutão, o gato nãotinha um dos olhos.

Estacircunstância, de resto, apenas fez com que minha mulher gostasse mais dele,porque, como já disse, ela possuía em alto grau essa ternura de sentimento quefora o meu traço característico e a contínua origem de meus prazeres maissimples e mais puros.

Todavia,a afeição do gato por mim parecia aumentar na razão direta da aversão que por elesentia.

Sentiacom uma obstinação que dificilmente faria compreender ao leitor.

Sempreque me sentava, saltava-me para os joelhos, acariciando-me excessivamente.

Seme levantava para andar, o gato metia-se por entre as minhas pernas, e quase medeitava ao chão, ou então, enterrando as unhas compridas afiladas no meu fato,subia-me pelo corpo até ao peito.

Nessemomento, ainda que desejasse imenso matá-lo com uma só pancada, impedia-me de ofazer em parte a recordação do meu primeiro crime, mas principalmente —devoconfessá-lo —o verdadeiro terror que o animal me inspirava.

Esseterror não era positivamente o terror dum mal físico, e eu, entretanto, nãosaberia defini-lo doutra forma.

Quaseme envergonho de confessar —mesmo nesta cela de criminoso –, sim, quase meenvergonho de confessar que o terror e o horror que me inspiravam o gato eramaumentados por uma das mais completas quimeras que é possível conceber.

Minhamulher chamara mais duma vez a minha atenção para a natureza da mancha brancade que falei e constituía a única diferença visível entre este gato e o que eumatara.

Oleitor lembra-se sem dúvida de eu lhe haver dito que a mancha, apesar degrande, era primitivamente indefinida na forma; mas lentamente, por graus —porgraus imperceptíveis, e que a minha razão se esforçou duramente muito tempo porconsiderar imaginários –, tomara por fim uma rigorosa nitidez de contornos.

Amancha representava a imagem dum objeto que eu tremo de indicar, e era isso oque me fazia aborrecer e odiar o animal, e que me teria levado a me livrardele, se a tal me atrevesse. Era, disse, uma imagem odiosa —de um sinistroobjeto –, a imagem da Forca! Oh, lúgubre e terrível máquina! Máquina de Horrore de Crime. De agonia e Morte!

Edali em diante fiquei sendo tudo o que é possível imaginar-se de mais miserávelna Humanidade.

Umvil quadrúpede —de que eu facilmente matara um igual — um vil quadrúpede causarem mim — em mim, homem feito à semelhança do Deus Todo Poderoso —um tão grandee tão intolerável infortúnio!

Duranteo dia, o gato não me deixava um só momento; e de noite, a cada instante, quandosaía dos meus sonhos de indizível angústia, era para sentir no rosto o tépidohálito do animal, e o imenso peso —encarnação dum Pesadelo que me eraimpossível sacudir —, oprimindo-me eternamente o coração.

Soba pressão de semelhantes tormentos, o pouco de bondoso que restava em mimsucumbiu.

Tornaram-sefrequentes os maus pensamentos: os mais sombrios e os mais terríveis de todosos pensamentos.

Àhabitual tristeza de meu gênio juntou-se o ódio por todas as coisas e por todahumanidade.

Entretanto,minha mulher, que nunca se queixava, era o alvo, a mais paciente vítima dasfrequentíssimas e indomáveis erupções de fúria que me acometiam cegamente.

Umdia, por qualquer necessidade doméstica, acompanhou-se à cava da pobre casa emque a nossa pobreza nos obrigara a viver.

Ogato seguia-me pela escada, e, metendo-se por entre as minhas pernas, porformas que me ia fazendo cair, exasperou-me até a loucura.

Pegueino machado e, esquecendo-me, na raiva que de mim se apossou, do pueril temorque me contivera a mão até então, vibrei ao animal um golpe que seria mortal,se o tivesse atingido, o que não sucedeu por ter minha mulher me segurado obraço.

Estaintervenção exasperou-me diabolicamente: desembaracei o braço da mão com queela me segurava e enterrei-lhe o machado na cabeça.

Minhamulher caiu instantaneamente morta, sem soltar um só gemido.

Cometidoeste terrível crime, resolvi, imediatamente e resolutamente, esconder o corpo.

Compreendique não podia fazê-lo desaparecer de casa, tanto de dia quanto de noite, semcorrer o perigo de ser observado pelos vizinhos.

Acudiram-meao espírito muitos projetos.

Tivepor um momento a ideia de cortar o corpo em bocados que destruiria pelo fogo.

Depoisresolvi abrir uma cova no solo do porão.

Emseguida, pensei em deitar o corpo no poço do quintal. Depois lembrei-me de ometer num caixote como quaisquer gêneros, e chamar um homem que o levasse parafora de casa.

Porfim, recorri a um expediente que me pareceu o melhor de todos.

Resolviemparedar o corpo no porão, como os frades da idade média emparedavam, segundose diz, as suas vítimas.

Oporão tinha uma excelente disposição para semelhante desígnio.

Asparedes, mal construídas, tinham sido recentemente rebocadas, impedindo aumidade que a camada de cal endurecesse.

Alémdisso, uma das paredes tinha um ressalto, causado por uma chaminé, que foraedificada por forma idêntica à das paredes.

Nãoduvidei de que me fosse fácil arrancar os tijolos naquele sítio, introduzir alio corpo e colocar de novo os ladrilhos cuidadosamente, de sorte que ninguémpudesse descobrir nada de suspeito.

Enão me enganei no cálculo.

Comuma alavanca arranquei os tijolos com precaução e, depois de arrumar o corpo àparede interior, sentei-o nesta posição, até que, sem grande custo, pus tudo noseu primitivo estado.

Arranjandocom todas as precauções inimagináveis cal e areia, fiz uma pouca argamassa comque reboquei cuidadosamente a parte da parede que desmanchara.

Quandoacabei, vi com satisfação que a parede não levantaria as menores suspeitas,visto não apresentar o mais ligeiro indício de ter sido construída de novo.

Transporteipara fora de casa, com o maior cuidado, o entulho, e varri o porão.

Emseguida, comecei a procurar o animal que causara tão grande desgraça porque,por fim, eu resolvera firmemente matá-lo.

Seeu o encontrasse nesse momento, o seu destino era fatal. Mas parece que oardiloso animal, atemorizado pela violência da minha recente cólera, evitavacuidadosamente aparecer-me enquanto me durasse a fúria.

Éimpossível descrever ou de imaginar a profunda, a completa sensação de sossegoque a ausência do animal produziu em todo o meu ser.

Nuncamais o senti de noite, sendo, portanto, a primeira noite —depois que trouxera ogato para casa —que dormi, descansada e tranquilamente. Sim, eu dormi, apesarde ter a doer-me na consciência o assassínio que cometera!

Asegunda e terceira noite passaram sem que o gato aparecesse.

Umavez ainda respirei como homem livre. O mostro aterrorizado abandonara de todo acasa! Eu não o veria mais! A criminalidade da horrorosa ação inquietava-mepouquíssimo.

Tinhamaberto uma espécie de devassa, que dera resultado. Fora mesmo ordenada umabusca, mas naturalmente nada tinham podido descobrir.

Considereisegura a minha felicidade futura.

Noquarto dia depois do assassínio, entraram-me inesperadamente em casa unspoliciais, que procederam a uma nova busca.

Contando,de certo, com a impenetrabilidade do esconderijo, não senti temor.

Ospoliciais fizeram com que eu os acompanhasse nas buscas.

Nemum só canto da casa deixou de ser explorado.

Porfim, pela terceira ou quarta vez, desceram ao porão.

Nemum só músculo se me contraía.

Omeu coração batia regularmente, como dum homem que dorme tranquilamente.

Terminadotudo isso, olhei em volta e disse comigo mesmo:

—Aqui,ao menos, não perdi o meu trabalho.

Entreino porão, cruzei os braços, e comecei a passar dum lado para o outro com todanaturalidade.

Ospoliciais estavam completamente satisfeitos e preparavam-se para sair.

Sentino coração um tão forte júbilo que me foi impossível reprimi-lo.

Tinhaa necessidade absoluta de pronunciar uma palavra, pelo menos que significasseum triunfo, e que robustecesse nos policiais a convicção que tinham da minhainocência.

—Meussenhores —disse eu por fim, quando os policiais subiam as escadas –, sinto-mefeliz por lhes ter dissipado as suspeitas. Desejo-lhes a todos uma excelentesaúde, e em tudo nada mais que delicadeza. Esta casa é bem edificada, nãoacham, meus senhores? (No desejo, que se apoderou de mim, de dizer qualquercoisa com ares impertinentes, nem sabia o que dizia.) Pode dizer-se sem medo deerrar que esta casa é admiravelmente bem edificada. Estas paredes — vão-seembora, meus senhores? —estão solidamente construídas!

Eao pronunciar estas palavras, por uma frenética petulância, bati uma fortepancada com uma bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede pordetrás da qual estava o cadáver da esposa do meu coração.

Ah,que ao menos Deus me proteja e me livre do Arquidemônio.

Apenaso eco da pancada se repercutiu no silêncio da cave, uma voz respondeu pordetrás da parede! Um gemido meio velado e entrecortado, como o vagido de umacriança, que imediatamente se transformou num grito prolongado, sonoro econtínuo, completamente anormal e anti-humano —um uivo –, um ganido, misto demedo e esperança, como se pode ouvir no inferno, som terrível como se saído dagarganta dos condenados às torturas infernais e dos demônios exultados pelascondenações.

Dizer-lhesos pensamentos que me atravessaram o cérebro seria loucura.

Senti-medesfalecer, encostei-me à parede fronteira.

Duranteum momento, os policiais conservaram-se imóveis sobre os degraus da escada,assombrados de horror.

Uminstante depois, uma dúzia de braços robustos puxavam encarniçadamente pelaparte da parede da chaminé que dias antes eu rebocara de novo.

Aparede caiu, por fim completamente, por uma só vez.

Ocadáver, já bastante putrefato, e coberto de sangue coalhado, apareceu diretoaos olhos dos policiais.

Sobrea cabeça do corpo, com a cabeça aberta e um único olho chamejante, estava ohediondo animal que me fizera praticar o assassínio, e cuja voz reveladora meentregava ao carrasco!

Euemparedara o gato conjuntamente com o cadáver de minha mulher!

Conto publicadooriginalmente no Diário do Maranhão entre os dias 1ª e 5 de maio de 1890.


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